O Tempo que Faltava: o Brasil Ajusta o Relógio da Inclusão nos Concursos Públicos

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Projeto de lei garante tempo adicional a candidatos com autismo e TDAH, consolidando um marco de equidade e acessibilidade nos certames públicos brasileiros.

O Cérebro contra o Relógio: a Ciência por Trás da Necessidade

Compreender a importância do tempo adicional exige ir além do senso comum e adentrar o campo da neurociência. Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) não possuem menor capacidade intelectual, mas sim modos singulares de funcionamento cerebral, que influenciam aspectos como atenção, flexibilidade cognitiva, memória de trabalho e velocidade de processamento.

Estudos recentes demonstram que, embora essas pessoas tenham plena competência para compreender e resolver problemas, muitas vezes necessitam de mais tempo para processar informações e expressar suas respostas. Em provas com tempo rígido, o que se mede não é o conhecimento, mas a rapidez — e essa diferença pode se tornar uma barreira injusta.

Reconhecer essa dinâmica é admitir que ritmos diferentes não significam limitações, mas diversidade de funcionamento. O tempo adicional, portanto, não é um privilégio: é um instrumento de equidade que permite a todos demonstrar o que realmente sabem.

O Projeto de Lei: uma Análise Detalhada

Dois projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados representam um avanço significativo na garantia dos direitos de pessoas com TEA e TDAH em concursos públicos e processos seletivos. As propostas buscam assegurar condições adequadas de participação, promovendo equidade e inclusão.

O Projeto de Lei nº 4848/23, de autoria da deputada Maria Arraes (Solidariedade-PE), propõe a concessão de tempo adicional para a realização de provas. A medida altera a Lei nº 12.764/2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. A propositura já recebeu parecer favorável em comissões temáticas da Câmara e, no momento, aguarda análise na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), última etapa antes de seguir ao Plenário.

Paralelamente, o Projeto de Lei nº 4915/23, apresentado pelo deputado Bruno Ganem (PODE-SP), busca incluir expressamente o TEA no rol de deficiências que garantem atendimento prioritário em vestibulares e concursos públicos. A proposta modifica a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) e a Lei nº 7.853/1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas com deficiência.

Um passo importante foi o parecer favorável da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, conforme noticiado pela Agência Câmara de Notícias, quanto ao tema do tempo adicional.

Contudo, vale ressaltar que os projetos ainda não têm força de lei. Para que as mudanças se tornem efetivas, é necessário que concluam a tramitação na Câmara, sejam aprovados pelo Senado Federal e, por fim, sancionados pela Presidência da República.

A Realidade em Números: Exclusão e Potencial Desperdiçado

Segundo o Censo de 2022, o Brasil possui cerca de 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas com autismo, representando 1,2% da população. Já o Censo Escolar de 2024 revelou um salto de 636 mil para 918 mil matrículas de alunos com TEA na educação básica em apenas um ano — um crescimento de 44%.

Apesar do avanço educacional, o cenário laboral continua desafiador: 85% dos adultos autistas estão fora do mercado de trabalho. Essa exclusão representa não apenas um problema social, mas também um desperdício de potencial humano e intelectual.

O acesso a cargos públicos, por meio dos concursos, pode ser uma das formas mais eficazes de promover inclusão, autonomia e estabilidade. Ao eliminar a barreira do tempo, o Estado não concede privilégios — corrige distorções históricas que impediam talentos de florescer.

O Contexto Global e as Controvérsias

A política não é inédita. Países como Estados Unidos, Reino Unido e Irlanda já adotam há décadas protocolos consolidados de reasonable accommodations — ou “adaptações razoáveis” —, um conjunto de medidas destinadas a garantir igualdade de condições a pessoas com deficiência ou transtornos neurodivergentes em ambientes educacionais e profissionais.

Essas adaptações variam conforme a necessidade individual e podem incluir tempo extra em provas, ambientes com menos estímulos, materiais acessíveis ou apoio tecnológico. São reconhecidas por legislações internacionais como instrumentos de justiça e equidade, e não de privilégio.

Entre todas, o tempo adicional é a medida mais adotada em exames e concursos, justamente por equilibrar os diferentes ritmos sem alterar o conteúdo ou o nível de exigência.

Há, contudo, debate acadêmico. Um estudo de 2010 apontou que o tempo adicional nem sempre é igualmente benéfico a todas as pessoas com TDAH. Ainda assim, a maioria das diretrizes internacionais reforça a importância da análise individualizada — cada pessoa tem necessidades diferentes, e a política deve refletir essa singularidade.

O PL 4848/23 acerta ao determinar que o tempo adicional será concedido mediante solicitação prévia e comprovação da necessidade, evitando generalizações e garantindo justiça caso a caso.

 Um Passo Rumo à Equidade Real

A aprovação do projeto representa um marco civilizatório, pois nos obriga a repensar o conceito de meritocracia. Um sistema que trata todos de forma idêntica, ignorando as diferenças neurológicas, não é meritocrático — é excludente.

Pequenas adaptações, como o tempo adicional, não criam vantagens, mas nivelam o terreno para que a verdadeira capacidade de cada candidato seja medida com justiça.

É tempo de reconhecer que cada mente tem seu próprio ritmo — e que a inclusão começa quando o relógio da sociedade passa a respeitar o tempo de todos.

Por Dra. Kênia Quintal