Uma mudança legislativa de enorme relevância social entrou em vigor no país e pode transformar a vida de milhões de brasileiros até hoje invisibilizados. A Lei nº 15.256/2025, sancionada em 13 de novembro, incluiu formalmente na Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei 12.764/2012) o incentivo ao diagnóstico de TEA também para adultos e idosos. É um avanço que corrige uma lacuna histórica e ilumina uma população que, por décadas, permaneceu invisível.
Durante muito tempo, o debate público sobre autismo esteve restrito à infância. As políticas de saúde, educação e assistência concentraram esforços especialmente nas crianças — e, com isso, milhões de adultos e idosos ficaram à margem de avaliações adequadas, carregando rótulos equivocados como “tímido”, “excêntrico”, “ansioso” ou diagnósticos incompletos que não explicavam suas vivências. O novo marco legal reconhece essas trajetórias e impõe ao Estado a obrigação de agir.
O Retrato do Autismo no Brasil: O que os números revelam
Pela primeira vez, o Brasil dispõe de dados demográficos sobre o autismo graças à inclusão de uma pergunta específica no Censo 2022. Segundo o IBGE, 2,4 milhões de brasileiros se autodeclararam diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista — o equivalente a 1,2% da população.
Mas especialistas são unânimes em afirmar: esse número é apenas o piso.
A faixa etária com maior prevalência de diagnóstico é a de 5 a 9 anos, com 2,6%, o equivalente a 1 em cada 38 crianças. Se essa proporção fosse projetada para a população geral, o Brasil teria mais de 5,5 milhões de autistas, revelando uma subnotificação superior a 3 milhões de pessoas.
A disparidade de gênero também chama atenção. Enquanto a relação geral é de 1,4 homens para cada mulher autista, na infância essa proporção sobe para 3,1 para 1, aproximando-se dos padrões internacionais, como o índice do CDC nos Estados Unidos (3,4 para 1). Isso reforça a hipótese de que mulheres e meninas seguem sendo subdiagnosticadas, muitas vezes por apresentarem sinais mais sutis ou socialmente camuflados.
O alívio — e os desafios — do diagnóstico tardio
O diagnóstico na vida adulta tem crescido. Para muitos, ele representa um reencontro consigo mesmos.
Marcos, advogado diagnosticado aos 54 anos, descreve o impacto emocional: “Não é sobre ter um laudo. É sobre finalmente me reconhecer. Eu achava que tinha algo errado comigo… e não tinha. Eu só era eu.”
Mas a jornada até esse reconhecimento ainda é árdua. A implementação da lei enfrenta um cenário complexo: falta de profissionais capacitados no SUS, especialmente para avaliação adulta; filas extensas para consultas e avaliações multiprofissionais; sobreposição de sintomas com quadros de ansiedade, depressão e processos naturais do envelhecimento; e, baixa integração entre políticas de saúde mental, atenção primária e políticas voltadas à população idosa.
A nova lei chega, portanto, como um instrumento necessário — mas que exigirá de planejamento, investimento e capacitação para produzir resultados concretos.
O que muda com a nova lei?
A Lei 15.256/2025 transforma em diretriz obrigatória aquilo que antes era apenas uma demanda social crescente. As principais mudanças incluem:
✔ Ampliação do acesso ao diagnóstico
O SUS deverá estruturar e fortalecer fluxos de atendimento para avaliação de TEA em todas as idades, incluindo idosos.
✔ Capacitação profissional
Equipes de saúde da família, CAPS e ambulatórios precisarão ser treinados para identificar o autismo em sua expressão adulta.
✔ Campanhas de conscientização
O Estado deverá informar a população, combater estigmas e estimular o acesso ao diagnóstico tardio.
✔ Integração de políticas públicas
O atendimento à pessoa idosa e a rede de saúde mental terão de dialogar de forma mais estreita.
Um passo civilizatório
Como destacou o autor da proposta, deputado Zé Haroldo Cathedral (PSD-RR), não é possível construir políticas inclusivas ignorando milhões de brasileiros que cresceram sem o reconhecimento de sua neurodivergência.
A nova lei é, antes de tudo, um gesto de reparação.
Reparação para aqueles que atravessaram a vida acreditando que havia algo de errado com eles — quando, na verdade, faltava ao Estado reconhecer suas singularidades.
Garantir o direito ao diagnóstico para adultos e idosos não é apenas um avanço legal: é uma afirmação de dignidade. É dar nome àquilo que sempre existiu, mas que, por tanto tempo, permaneceu silenciado.
Por Dra. Kênia Quintal – Advogada e Colunista


