CNH sem Autoescola – Proposta do Governo Enfrenta Queda de Braço no Congresso

79.9k Visualizações
Tempo de Leitura: 9 Minutos
- ADS -
Ad image

O que parecia ser apenas mais uma consulta pública do Governo Federal transformou-se rapidamente em uma disputa política que pode definir o futuro da formação de motoristas no Brasil. A proposta do Ministério dos Transportes de acabar com a obrigatoriedade das autoescolas para obtenção da CNH, que promete redução de até 80% nos custos, agora enfrenta um obstáculo inesperado: o Congresso Nacional quer barrar a medida antes mesmo que ela saia do papel.

A Promessa que Dividiu o País

Quando o Ministério dos Transportes abriu, em 2 de outubro, a consulta pública sobre a minuta de resolução do Contran que flexibiliza o processo de habilitação, a promessa era sedutora. Com a possibilidade de estudar a teoria por conta própria, fazer cursos online gratuitos oferecidos pelo governo e até mesmo dispensar as 20 horas obrigatórias de aulas práticas, o custo da CNH — que hoje pode chegar a R$ 4.200.

Os números apresentados pelo governo impressionam e justificam, ao menos em tese, a urgência da medida: 20 milhões de brasileiros dirigem sem habilitação no país. Só em 2024, foram registradas mais de 900 mil infrações por dirigir sem CNH, e 2025 já acumula quase 800 mil casos até setembro. A lógica governamental é clarase o problema é o custo elevado, a solução é baratear o processo e regularizar essa multidão de motoristas informais.

A consulta pública, disponível na plataforma Participa + Brasil (processo nº 50000.034372/2025-74), já recebeu mais de 18 mil contribuições em poucos dias, tornando-se uma das maiores da atual gestão. O prazo para opinar vai até 2 de novembro — ou pelo menos deveria ir.

 O Congresso Entra em Cena

No dia 7 de outubro, cinco dias após a abertura da consulta pública, o Deputado Federal Coronel Meira (PL/PE) apresentou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 800/2025, que pretende sustar imediatamente os efeitos da consulta pública. O argumento do parlamentar é técnico, mas devastador: a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) teria cometido uma ilegalidade ao abrir a consulta sem realizar antes a Análise de Impacto Regulatório (AIR), exigida pelo Decreto nº 10.411/2020.

Na justificativa do PDL, Coronel Meira é contundente: “A AIR não é uma mera formalidade burocrática, mas uma condição de validade para atos dessa natureza. Ao iniciar uma consulta pública sem o devido estudo de impacto, a Senatran pratica um ato sem motivação adequada, submetendo à sociedade um debate cujos efeitos sobre a segurança no trânsito, sobre a economia do setor e sobre a vida dos cidadãos são completamente desconhecidos”.

O parlamentar cita precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que reforçam a necessidade de fundamentação técnica para a validade de atos administrativos complexos. Segundo ele, a Senatran inverteu as etapas: deveria primeiro fazer os estudos, depois apresentar uma proposta fundamentada e só então abrir para consulta pública.

 300 Mil Empregos em Risco

O PDL 800/2025 chega em um momento em que o setor de autoescolas já estava mobilizado contra a proposta. A Federação Nacional das Autoescolas (Feneauto) estima que a medida pode resultar na demissão de cerca de 300 mil trabalhadores e no fechamento de aproximadamente 15 mil empresas espalhadas pelo Brasil.

Ygor Valença, presidente da Feneauto, não poupa críticas: “O texto apresentado não traz modernização nem desburocratização. O que está em curso é uma substituição do sistema atual, não um aprimoramento. Modernizar seria revisar as exigências já existentes, e não eliminar o processo de formação profissional”.

Para a entidade, a proposta é populista e pode agravar o problema que diz resolver. “Se hoje temos 20 milhões de pessoas dirigindo sem habilitação, liberar o processo sem preparo não vai resolver o problema, vai ampliá-lo. O foco deveria estar em fiscalização, educação e treinamento, não em flexibilizar a formação”, argumenta Valença.

Feneauto já vinha articulando uma ofensiva política em Brasília, buscando apoio de deputados e senadores para barrar ou modificar substancialmente a proposta. O PDL 800/2025 representa, portanto, uma vitória parcial do setor, que agora conta com um instrumento legislativo para tentar paralisar a iniciativa do governo.

 Os Cenários Possíveis

A situação atual da nova proposta de CNH é de total indefinição, com dois cenários principais, ambos com riscos significativos:

Se o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) for aprovado: A consulta pública será suspensa, e o processo retornará à estaca zero. A Senatran será obrigada a realizar uma Análise de Impacto Regulatório (AIR), exigindo novos estudos técnicos para comprovar a viabilidade e segurança da proposta. Este caminho, embora atrase a implementação, é considerado juridicamente mais seguro, pois corrige a falha processual desde o início.

Se o PDL for rejeitado: A consulta pública terminará, o Contran aprovará a resolução e a nova CNH entrará em vigor. No entanto, essa aparente vitória do governo carrega um risco futuro: a ausência da AIR pode ser considerada uma ilegalidade de origem. Caso isso seja confirmado judicialmente mais tarde, a resolução poderá ser anulada, tornando irregulares todas as CNHs emitidas sob o novo modelo, pois atos nulos não se validam com o tempo.

Em resumo, a aprovação do PDL força uma correção imediata do processo, enquanto a rejeição adia o problema, criando uma insegurança jurídica que pode invalidar todo o projeto no futuro.

O Que Vem Pela Frente

Por enquanto, a consulta pública continua ativa e pode receber contribuições até 2 de novembro. Mas o clima é de incerteza. O PDL 800/2025 seguirá para análise nas comissões temáticas da Câmara dos Deputados, e a celeridade de sua tramitação é incerta.

O setor de autoescolas comemora a iniciativa do deputado e promete intensificar a mobilização. O governo, por sua vez, defende que a proposta é legítima e necessária, e que os exames obrigatórios garantem a segurança.

Enquanto isso, 20 milhões de brasileiros continuam dirigindo sem habilitação, e o país segue sem uma solução consensual para um problema que afeta diretamente a vida, a economia e a segurança de milhões de pessoas.

 Modernizar ou Precarizar?

A questão que se impõe é: será que não existe um caminho de equilíbrio? É possível modernizar e tornar o processo de habilitação mais acessível sem comprometer a qualidade da formação dos condutores?

Se o governo tem razão, que apresente os estudos e dados que sustentem a proposta. Se o Congresso tem razão, que cobre a fundamentação técnica e o cumprimento das etapas legais.

No fim, o que está em discussão não é apenas o custo de uma carteira de motorista, mas o próprio modelo de formação e segurança nas vias brasileiras. E, até que a disputa entre Executivo e Legislativo se resolva, a decisão que definirá o futuro da CNH no país segue em aberto — e com ela, a direção de um debate que vai muito além do volante.

Para participar da consulta pública (enquanto estiver ativa):

Acesse: www.gov.br/participamaisbrasil/cnh-para-todos

Processo: 50000.034372/2025-74

Prazo: até 2 de novembro de 2025 (sujeito a alterações)

Para acompanhar o PDL 800/2025:

Câmara dos Deputados – Deputado Coronel Meira (PL/PE)

Objetivo: Sustar os efeitos da consulta pública da Senatran

Por Kênia Quintal – Advogada – Colunista – Procuradora Geral do Município de Carapebus-RJ