Do match à prisão: mulher manda 159 mil mensagens após encontro inicial e acaba presa – Quando a obsessão se confunde com amor

A Gazeta Popular
85k Visualizações
Tempo de Leitura: 7 Minutos
- ADS -
Ad image

Na era digital, basta um simples clique para que duas pessoas se conectem. O “match” pode ser o início de grandes histórias — mas também de pesadelos. Foi o que ocorreu no Arizona (EUA), onde Jacqueline Ades, de 31 anos, após um único encontro, enviou mais de 159 mil mensagens para um homem. Entre juras de amor e ameaças perturbadoras, chegou a afirmar que transformaria os rins dele em sushi. O caso culminou em prisão por invasão e perseguição.

Esse episódio, que ganhou repercussão internacional, acende um alerta global: onde termina o afeto e começa a violência?

 

O stalking no Brasil: da invisibilidade à criminalização

No Brasil, o stalking (ou perseguição) durante muito tempo foi tratado como uma conduta de difícil enquadramento. Insistentes ligações, mensagens incontroláveis, vigilância e perseguições físicas eram enquadrados genericamente em crimes como ameaça ou perturbação da tranquilidade — ambos com penas leves, muitas vezes incapazes de conter a escalada do comportamento obsessivo.

A virada aconteceu em 2021, com a edição da Lei nº 14.132/2021, que tipificou o crime de perseguição no artigo 147-A do Código Penal:

Art. 147-A – Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

Pena: reclusão de 6 meses a 2 anos e multa, podendo aumentar se o crime for contra criança, mulher, idoso ou mediante concurso de duas ou mais pessoas.

Essa mudança legislativa trouxe mais segurança às vítimas, que antes ficavam expostas à banalização desse tipo de violência.

 

Casos emblemáticos no Brasil

O país já foi palco de episódios marcantes que chamaram a atenção para a gravidade do stalking:

  • Ituiutaba (MG, 2024/2025) – A artista plástica Kawara Welch Ramos de Medeiros foi condenada a mais de 10 anos de prisão pelos crimes de perseguição, roubo e desobediência judicial. Durante cinco anos, Kawara perseguiu um médico e sua família, chegando a enviar mais de mil mensagens em um único dia, além de roubar pertences da esposa dele. Foi uma das maiores penas já aplicadas por stalking no Brasil.
  • Itajaí (SC, 2025)Itajaí/Itapema (SC, 2025) – O dentista Felipe Cordeiro e sua noiva foram perseguidos durante cinco anos por Daiane Priscila Szlachta Terrez. A mulher enviava presentes no Dia dos Namorados, criava perfis falsos, invadia prédios e chegou a ameaçar o casal de morte. Também publicava em redes sociais que estaria em um relacionamento com o dentista — algo que nunca existiu. Presa pelos crimes de perseguição, injúria e ameaça, foi submetida a exame psiquiátrico. O laudo apontou que sofre de transtorno psicótico, o que a torna inimputável. Por isso, o Ministério Público pediu a conversão da prisão preventiva em internação provisória.
  • Ana Hickmann (2016) – Antes mesmo da lei, a apresentadora foi alvo de um fã obcecado que chegou a invadir o hotel em que ela estava hospedada em Belo Horizonte, armado. O episódio terminou em tragédia, mas deixou claro como perseguições virtuais podem se converter em risco real à vida.

Esses casos mostram que, assim como no exemplo norte-americano, o stalking não escolhe fronteiras nem perfis sociais: qualquer pessoa pode ser vítima.

 

O crescimento do stalking no Brasil em números

Além dos casos de grande repercussão, os dados oficiais confirmam que o stalking é um crime em expansão no país:

  • O 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 18 de julho de 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), registrou um crescimento expressivo nos casos de stalking: foram 294 em 2022 contra 77.083 em 2023, o que representa uma crescente de 34,5% em apenas um ano.

 

  • O mesmo levantamento do FBSP revelou que 8,5 milhões de brasileiras relataram ter sido vítimas de perseguição. O estudo trouxe ainda um dado inédito: cerca de 1,5 milhão de mulheres tiveram imagens íntimas expostas sem consentimento.

 

  • Embora a maioria dos registros envolva mulheres, os homens também aparecem nas estatísticas: só no primeiro semestre de 2024 foram contabilizadas 911 denúncias, das quais 418 partiram de vítimas do sexo masculino.

Esses dados reforçam que, embora o fenômeno afete sobretudo mulheres, ninguém está imune. O padrão é sempre o mesmo: mensagens em excesso, vigilância, invasão de privacidade e ameaças que corroem a liberdade da vítima e comprometem sua saúde mental.

Do match à prisão, do fã ao perseguidor, do ciúme à violência: o stalking é um crime que destrói vidas e exige uma resposta firme da sociedade. Os casos apresentados revelam um padrão perturbador: o que começa como interesse romântico ou admiração pode rapidamente se transformar em obsessão destrutiva, deixando rastros de trauma e medo.

A tipificação do stalking em 2021 foi um avanço fundamental, mas representa apenas o primeiro passo de uma jornada mais longa. A lei por si só não é suficiente para combater um fenômeno que tem raízes profundas em questões culturais e psicológicas. É preciso uma mudança de mentalidade coletiva, onde insistência não seja romantizada como prova de amor, e controle não seja aceito como demonstração de cuidado.

Certo é que o amor, como nos ensina Luís de Camões, só se prende por vontade. Do contrário, não é amor.

Por Kênia Quintal (Advogada – Colunista – Procuradora do Município de Carapebus)